A divisão se instalou em 2001, quando a propriedade começou a ser identificada como Quilombo de Morro Alto ? antigo refúgio de escravos negros. Levantamentos históricos, antropológicos e fundiários estão confirmando que o local pertenceu a quilombolas. No final deste mês, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) deverá notificar os agricultores de que estão em território que não lhes pertence. Eles terão 90 dias para se defender. Depois, se a Presidência da República decretar, serão indenizados e desapropriados.
Herdeiros quilombolas esperam reaver a área
Os herdeiros dos quilombolas estão esperançosos diante da perspectiva de reaverem a área, no Litoral Norte. Presidente da Associação Comunitária Rosa Osório Marques Quilombo de Morro Alto, Wilson Marques da Rosa, 52 anos, já está erguendo a sede social dos moradores. O nome da associação Rosa Osório Marques é uma homenagem à fazendeira que legou a propriedade para seus 24 escravos, em 1887, em reconhecimento ao suor e à lealdade deles.
Wilson lembra que o testamento da estancieira nunca foi respeitado por governos e posseiros. Diz que sua bisavó, Felisberta, e a avó, Rosalina, tiveram suas terras invadidas e usurpadas. Famílias de negros foram empurradas para cantos pouco férteis ou tiveram de abandonar o lugar.
? O Estado assentou posseiros (refere-se aos agricultores) no quilombo. Alguns têm o título de posse de 18 hectares, mas se adonaram de 200 hectares ? destaca Wilson.
Teresa dos Santos da Silva, 67 anos, quatro pontes de safena, achou que não viveria o bastante para presenciar o sonho de conquistar a sua fatia na herança quilombola. Confinada em um terreno de 1,5 hectare, à beira da rodovia Osório-Maquiné (BR-101), ela agora vislumbra melhor futuro para seis filhos, 14 netos e um bisneto.
? A gente sofreu, mas agora há esperança ? diz.
O borracheiro Manoel da Conceição Silveira, 65 anos, também está alentado. Morando em uma área de 70 por 60 metros, quer dedicar a eventual posse de um imóvel aos pais, Alípio e Aurora, que se consumiram no trabalho braçal e morreram analfabetos.
Horticultores temem ser desapropriados
O outro lado da moeda está aflito com a ameaça de desapropriação. Os agricultores esparramam um mapa sobre a mesa, com data de 1882, em que tentam provar que a área pertenceu a herdeiros de João Antônio Marques e foi regularmente loteada. Garantem que somam 950 famílias ? mais do que o dobro das cadastradas pelo Incra.
Presidente da Associação Comunitária dos Proprietários em Defesa da Terra Maquiné, Amado Gomes de Oliveira Filho, 65 anos, afirma que os agricultores já estão na área pela sexta geração. Fixaram raízes: ergueram igreja, casas, galpões, cemitério e investiram na fertilização do solo para produzir hortigranjeiros o ano todo.
A colheita é tão rentável que Lauro Ervino Gayer, 64 anos, guarda uma medalha de “Produtor Modelo” concedida em 1980 pelo Incra ? o mesmo órgão que agora pode desalojá-lo. Cultivando 24 hectares com os irmãos, ele produz alface, couve, rúcula e temperinhos.
? Meu avô, Henrique, já estava aqui. Sempre fui agricultor, não tem explicação o que está acontecendo ? lamenta-se Gayer, pai de dois filhos.
Edson Ricardo de Souza, 41 anos, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, recorda que há proprietários com financiamentos pendentes para compra de trator e maquinário. Pergunta como vão pagar os empréstimos se forem desapropriados. Como seguirão produzindo diante das incertezas.
? Se sairmos daqui, vamos trabalhar onde? ? questiona.
O clima entre os herdeiros quilombolas e os agricultores já não é mais de cordialidade ? alguns não se falam, mal se cumprimentam. Mas também não é de aberta inimizade. Ambos se aferram a suas razões.