A pecuarista Dora Bileco assumiu a gestão da fazenda da família em Mato Grosso do Sul após ficar viúva. Com filhos pequenos, Dora teve que estudar, capacitar-se e abandonar a arquitetura para dar continuidade aos negócios, antes comandados pelo marido.
Encontrou muita resistência entre os empregados, muitos pediram demissão por não aceitarem o comando feminino. Ela conta que para evitar ser colocada à prova, costumava ler os manuais de máquinas e equipamentos quando precisava contratar serviços de manutenção ou comprar peças para seus tratores.
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Assim como Dora, no Brasil, 1,7 milhão de mulheres estão na gestão ou codireção de propriedades rurais, segundo o Censo Agropecuário de 2017. Para apresentar um pouco sobre essas produtoras, a Embrapa lançou a Coleção Mulheres Rurais no Brasil, levando em consideração diferentes realidades.
Mesmo diante da multiplicidade de papéis assumidos nos estabelecimentos, a participação feminina passa quase despercebida. Em Mulheres na Pecuária, um dos livros da coleção, são apresentados dados, informações, perfis e desafios no gerenciamento de suas atividades no campo.
A publicação, coordenada pela pesquisadora Claudia de Mori, da Embrapa Pecuária Sudeste, foi escrita por vários pesquisadores e pesquisadoras de centros com atuação em pecuária no país.
Para Claudia, embora alguns fatos mostrem a importância da participação feminina na produção pecuária, há poucos registros, pesquisas e divulgação sobre o assunto.
“Os novos tempos e a mudança nos comportamentos trouxeram esse tema para o debate e uma coleção de publicações que contextualizem esta participação e os principais problemas, tira o assunto da invisibilidade e contribui nessa discussão”, destaca a pesquisadora.
As mulheres desempenham múltiplos papeis e responsabilidades na criação de animais, na propriedade e na família. Segundo Claudia, elas estão na lida diária do manejo, na gestão da propriedade, na agroindustrialização e nas organizações sociais.
“Infelizmente, aspectos culturais e normas sociais fizeram com que a contribuição econômica das mulheres na produção agroalimentar fosse ignorada e tratada como ‘complementar”.
“Os dados e histórias trazidas nessa publicação mostram um pouco desta multiplicidade de atuação e a importância das mulheres na produção pecuária. As histórias têm em comum uma mesma questão: a mulher produtora ou técnica ainda é vista com estranheza e desconfiança e isso exige dela um esforço muito maior para provar seu conhecimento e valor. Embora haja muitos problemas, elas têm seguido, transformando suas realidades e seu entorno. Elas mostram que o mundo da pecuária também é feminino”, observa.
O documento também apresenta recomendações de ações e políticas públicas direcionadas para as mulheres no campo, no que diz respeito ao enfrentamento a desigualdades de gênero no meio rural.
Claudia ressalta que uma mudança mais efetiva e ampla requer políticas públicas de acesso a recursos, serviços e treinamentos, contemplando a diversidade das situações nas diferentes regiões do território brasileiro.
O Censo (2017) mostra que apenas 18,2% (450 mil) dos estabelecimentos de pecuária tinham, no período, gestão feminina. A região Nordeste apareceu com mais da metade dos estabelecimentos pecuários geridos por mulheres (53,8%).
Na sequência, seguem Sudeste (16,5%), Sul (10,4%), Centro-Oeste (10,2%) e Norte (9,2%). O tamanho médio da propriedade com mulheres na gestão foi de 48,8 ha, já as dirigidas por homens correspondem a uma média de 94,9 ha.
O perfil dessas gestoras é mais jovem comparando-se aos homens. Cerca de 30% delas têm menos de 35 anos. Nessa faixa etária, o grupo masculino é de 24,3%.
A publicação contribui para o alcance da meta 5, proposta pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), relacionada à igualdade de gênero.
Mulheres na direção
Em 1 mil hectares, no município de Bagé (RS), Lieli Borges Pereira trabalha com gado de corte e plantio de soja. Com a morte prematura do pai, Lieli assumiu a gestão da propriedade, saindo da cidade para a fazenda. Situações como essa não são incomuns. A sucessão antecipada por evento que envolve invalidez ou morte do pai-gestor.
Lucy Araújo de Armas, pequena produtora rural no município de Jaguarão (RS), trabalha em uma propriedade com 140 hectares, sendo 10 arrendados. No estabelecimento, cria gado de corte e ovinos. Lucy atua na criação e comercialização de cordeiros.
Antonielly Rottoli iniciou na pecuária em Mato Grosso do Sul, apoiando o marido nas atividades, principalmente na contabilidade. A mudança para Alto Paraíso (RO), em 2013, foi um momento de transformação.
Com o desenvolvimento e ampliação do negócio, ela aprimorou-se tecnicamente e como líder. Além de pecuarista, Antonielly é bacharel em Direito, presidente do Sindicato dos Produtores Rurais e líder do Movimento Agromulheres Rondônia.
A veterinária Aline Kehrle, junto com seu marido e em sociedade com seu pai, comanda uma propriedade rural de cinco mil hectares no Tocantins. Ela se formou, fez mestrado e morou fora do Brasil por dois anos, quando decidiu voltar, implantou um sistema inovador na fazenda que tinha sido de seu avô: o sistema ultra denso de pastejo rotacionado, preconizado pelo biólogo Allan Savory.
“Fazer algo diferente de todo mundo já gera desconfiança. Feito por uma mulher, então, mais ainda”, observa Aline. Mas a veterinária mantém a determinação de fazer a diferença: “Eu acredito muito no que a gente faz [na fazenda]. É muito difícil mudar o mundo inteiro. A gente só consegue mudar ao nosso redor”.
Por experiência própria, ela aconselha às mulheres que se dedicam à pecuária a cercarem-se de pessoas que acreditem nelas e busquem espaços onde sejam bem recebidas.
Filha de produtores rurais de Betânia, no Piauí, Francisca Neri é produtora de ovinos. Iniciou no associativismo aos 16 anos como secretária da Ascobetânia.
A oportunidade surgiu por uma demanda do Projeto Viva o Semiárido, para que mulheres e jovens participassem da diretoria da associação. Francisca foi preparada pelos dirigentes da Ascobetânia e, ao completar 18 anos, assumiu a presidência.
Atualmente, é secretária de agricultura de Betânia, vice-presidente da Ascobetânia e atua como conselheira da Cooperativa dos Produtores Rurais da Chapada Vale do Itaim (Coovita). Para Francisca, sua vida gira em torno da agricultura familiar, sendo a organização coletiva a sua ferramenta de transformação dos produtores e da realidade local.
Segundo ela, a mulher nas organizações é um novo necessário, por sua sensibilidade para conduzir as situações, maior capacidade de organização, pensar mais longe e ocupar espaços necessários, além de agregar a família ao negócio. Em 2022, ela foi reconhecida pelo Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA) como uma das Líderes da Ruralidade.
Rosevania Viera da Silva Leite é uma mulher do Agreste Alagoano. Há 30 anos comprou a sua primeira cabra para garantir a alimentação da filha recém-nascida. Rosevania vive em Limoeiro de Anadia, onde produz e comercializa leite de cabra e derivados, agregando valor e gerando renda para sustentar a família.
Desde 2010, envolve-se em exposições de caprinos na região Nordeste, buscando meios para melhorar a qualidade de vida das famílias da região do agreste e do sertão. Atualmente, é presidente da Associação de Agricultores Alternativos, uma organização formada por agricultores familiares que realiza capacitações visando à elaboração de produtos à base de leite de cabra.
Há, no país, muitos grupos de mulheres engajadas na agropecuária. Esses movimentos promovem encontros técnicos, treinamentos e até congressos voltados exclusivamente para o público feminino. Segundo a pesquisadora Claudia de Mori, as mulheres vêm conquistando seu espaço e contribuindo com novas perspectivas para uma pecuária mais plural e diversa.