Opinião

Recuperação judicial: o crédito e a pandemia de interesses

O presidente da Aprosoja Mato Grosso escreve a respeito das implicações da recuperação judicial no agronegócio e do projeto de lei sobre o tema que tramita no Congresso

Todos, até o mais inocente dos seres humanos, já perceberam que as crises são propícias para que interesses individuais sejam revestidos de nova roupagem e vendidos como sendo a salvação para determinados problemas da sociedade. Logo, a Associação dos Produtores de Soja e Milho de Mato Grosso (Aprosoja-MT) não seria ingênua a ponto de acreditar que a agricultura estaria imune a esse vírus. Ultimamente, uma avalanche de artigos, reportagens e até mesmo a opinião de juristas renomados tomaram conta da internet para fazer um alerta catastrófico: a recuperação judicial do produtor rural pessoa física destruirá o crédito agrícola!

Até mesmo uma ex-celebridade política, vivendo estrategicamente em ostracismo, decidiu aparecer para fazer a defesa intransigente dos seus interesses. É importante observar que os mensageiros do apocalipse representam invariavelmente uma única corrente de pensamento, o que não desqualifica suas opiniões, mas tal fato precisa ser levado em consideração para não sermos induzidos a fazer uma análise estrábica da situação.

Antonio Galvan
*Antonio Galvan é produtor rural em Mato Grosso, atual presidente da Aprosoja Mato Grosso e vice-presidente da Aprosoja Brasil. Foto: divulgação

Antes de mais nada, vale ressaltar que a recuperação judicial é um remédio caro, dispendioso e diferente daquilo que pode representar para um empresário, capaz de se camuflar atrás de uma personalidade jurídica, a pessoa física recebe imediatamente uma espécie de tatuagem de mal pagador, pecha da qual por muito tempo não conseguirá se livrar.

Por outro lado, é evidente que o caminho da autocomposição deve ser sempre a primeira opção para a solução de conflitos, seja ela por manifestação de vontade bilateral, mediação ou arbitragem. Contudo, sabemos que em muitos casos esse desfecho não é possível, ou porque a oferta de acordo não é atrativa para o credor, ou pela crença deste que a expropriação dos bens dados em garantia o possibilitará auferir maior ganho que a negociação consensual. Nesses casos, surge como última alternativa o pedido de recuperação judicial.

É importante frisar que o instituto não deve ser utilizado como salvaguarda para quem agiu com displicência na gestão financeira do seu negócio, e a tentativa de transformar a recuperação judicial em uma ferramenta ardilosa de repactuação de contratos deve ser coibida e os autores exemplarmente punidos, conforme determinam os estritos rigores da lei.

Por óbvio a missão não é trivial, assegurar o direito a quem lhes é devido e, ao mesmo tempo, criar mecanismos que mitiguem o risco de fraudes processuais, uma construção complexa e que demanda o exercício de competências multidisciplinares.

Entretanto, esse é um desafio que os legisladores e representantes dos segmentos mais relevantes da economia não podem se furtar a encarar, e a busca por soluções deve canalizar a energia gasta hoje com ladradas digitais.

Para deixar claro, o instituto da recuperação judicial não é uma “jabuticaba” brasileira. Países com economias sólidas como Alemanha, França e Estados Unidos têm legislações consolidadas sobre o tema, o último, inclusive, foi referência para a formulação da lei n°. 11.101/2005.

O Código de Insolvência Americano, denominado em linguagem vernácula Bankruptcy. U.S. Code, traz no capítulo 11 o que chamamos de regra geral, normatiza a recuperação da empresa e da pessoa natural em dificuldades financeiras. O capítulo 12, incluído após a crise dos anos 80, oferece benefícios adicionais para agricultores e pescadores em determinadas circunstâncias, além daquelas oferecidas às demais pessoas físicas. Os débitos a serem repactuados nesta modalidade estão limitados a US$ 10 milhões de dólares, contudo, caso superem essa quantia o produtor poderá pleitear o instituto nos termos do capítulo 11.

O Código Comercial Francês, através da lei n. 2005/845 de julho de 2005 e Ordonannce n. 2008/1345 de dezembro de 2008, prevê no título II uma espécie de recuperação judicial voltada pra os empreendedores que se encontram em dificuldade financeira, porém, que ainda não estão em situação de inadimplemento (sauvegarde).

No título III, está normatizado o procedimento de recuperação com intervenção judicial para os casos em que o devedor deixa de honrar seus compromissos (redressement judiciaire). Em ambos os casos, as regras valem para pessoa jurídica de direito privado e a qualquer pessoa física envolvida em uma atividade comercial, artesanal ou agrícola e profissional liberal, sem a obrigatoriedade do Registro Público de Empresas Mercantis como pré-requisito para pleitear o direito, bastando apenas a comprovação do exercício da atividade agrícola, no caso do produtor rural.

No dia 21 de maio deste ano tivemos um projeto de lei aprovado na Câmara dos Deputados que cita o sistema francês de prevenção e antecipação da crise empresarial, o PL nº 1.397/2020, que institui medidas de caráter emergencial mediante alterações transitórias de dispositivos da lei nº 11.101/2005, sinal de que nossos legisladores estão atentos aos modelos exitosos aplicados em outros países.

A Lei de Insolvência germânica, também denominada Insolvenzordnung – InsO, foi regulamentada em 1999 e trouxe como principal novidade ao ordenamento jurídico daquele país a consolidação de outras duas leis que tratavam do mesmo instituto.

Como regra geral, o processo de recuperação judicial alemão sujeita todas as empresas, bem como a pessoa natural que exerce atividade econômica independente, como agricultores (landwirte), médicos (ärzten), etc.

Observe que há algo em comum na legislação dos três países citados: o instituto da recuperação judicial não está restrito às empresas, mas direcionado a amparar o empresário. Para a maioria dos leitores esse tema está distante da realidade e, portanto, traz muitas novidades, mas não para os paladinos da verdade, que defendem que só as empresas deveriam ter acesso ao instituto. Eles conhecem profundamente o assunto, mas preferem lutar pelo cerceamento de direito a ter que debater temas que são de fato cruciais para o crédito agrícola: a concorrência entre os players, o equilíbrio das relações contratuais, a mitigação de assimetrias nas informações financeiras, o fortalecimento de câmaras arbitrais para a redução de demandas judiciais, entre outros tantos assuntos que vão ficando para segundo plano, obviamente preteridos em nome de uma segurança jurídica ao credor.

A Aprosoja sempre se posicionou, em todos os fóruns de que participou, no sentido de que tal medida de repactuação judicial não deveria sequer existir e, para nenhum empresário, independente da forma de constituição do seu negócio. Porém, ela existe, e não há intenção legislativa de extinguir o instituto, pelo menos não com projeto já apresentado. Sendo assim, a entidade busca garantir que o produtor rural não fique à mercê da recuperação judicial de empresas que tiveram condutas desastrosas na gestão financeira do seu negócio, fazendo com que o produtor seja levado à reboque a uma situação de impossibilidade de adimplir seus compromissos, mas tendo à mão apenas a Insolvência Civil, nos moldes do CPC, uma alternativa absolutamente incapaz de fornecer um ambiente equânime de condições de recuperação entre empresário de fato e de direito.

A entidade inclusive defende que seja aplicado mecanismo similar ao Manual de Crédito Rural para prorrogação de dívidas diante da ocorrência de comprovada situação de calamidade ou perda de safra por força maior, também para entes privados, pois entende que esta simples medida seria capaz de reduzir sobremaneira a demanda por recuperação judicial pelo produtor rural.

O crédito é um dos mais importantes insumos da atividade agrícola, tanto é que, de acordo com dados do Instituto Mato-grossense de Economia Agropecuária (Imea) – funding da soja 2019/2020 –  81% dos recursos necessários para o custeio da safra de soja de Mato Grosso são financiados por terceiros. É bem verdade, também, que esse crédito é remunerado, e muito bem diga-se de passagem. No ano de 2019, por exemplo, enquanto a taxa básica de juros da economia mantinha-se abaixo de 6% ao ano, era comum deparar-se com produtores que financiaram sua safra a um custo efetivo total de 18% a.a., e até mesmo quem tivesse contratado taxas ainda maiores.

Apesar do imperioso cuidado com ajustes que impliquem aumento de risco no mercado de crédito, não é razoável, tampouco concebível, que algum elo da cadeia, em especial aquele que fomenta uma safra futura, queira ser imune aos riscos que são inerentes à atividade. É como dirigir-se a uma casa lotérica e tentar convencer o atendente a lhe vender o bilhete premiado. Recentemente, uma empresa cerealista de Primavera do Leste ingressou com pedido de recuperação judicial, um plano superior a R$ 200 milhões em que figura mais de uma centena de produtores rurais no rol de credores. O último desfecho, até então, foi o indeferimento do pedido em virtude de inconsistências contábeis e de lógica da narrativa, alegados pelo juízo em sua decisão. Esse caso específico, para não citar tantos outros, nos deixa uma importante reflexão: de fato, é importante que a CPR seja reconhecida como um título forte e confiável, dando segurança jurídica aos credores, contudo, não podemos perder de vista a segurança daquele que se expõe aos mais diversos riscos, sejam eles de performance agronômica, mercado, câmbio, clima e reputação dos compradores: o produtor rural!

A Associação dos Produtores de Soja e Milho de Mato Grosso foi criada para representar a vontade da maioria, predominantemente composta por pequenos e médios produtores, e refuta acusações generalistas que tentam macular a reputação do homem do campo honesto e que trabalha de sol a sol para honrar com suas obrigações. Jamais aceitará, também, que os seus associados sejam medidos por régua alheia, independe do poderio econômico do interlocutor.

O projeto de lei n° 6.229/2005, sob a brilhante relatoria do Deputado Hugo Leal, reforma inúmeros dispositivos da lei n° 11.101/2005 com intuito claro de aperfeiçoar o instituto da recuperação judicial. Ainda há tempo para sugerir alterações ao texto, de forma que comporte os interesses dos dois lados da mesa. Para isso, os denominados fomentadores precisam eleger representantes com habilidade de negociação e autonomia para fechar acordos que não lhes sejam integralmente favoráveis, pois essa é a essência da autocomposição, o resto é imposição e terrorismo semântico.

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