Especial: cacau e chocolate do Brasil

Confira a história, a origem, as variedades, produção, beneficiamento e dicas para saborear essa delíci

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Quem conhece cacau, não reconhece o cheiro dos chocolates comuns. O cacau, o fruto que traz dentro de sua amêndoa a matéria-prima para o chocolate, tem cheiro forte, amadeirado, mais amargo do que doce. A razão da diferença entre o fruto e o produto é a mínima participação do ingrediente principal na fórmula dos chocolates comuns.

A legislação brasileira prevê que os chocolates tenham ao menos 25% de sólidos de cacau na sua composição. O que acontece é que sólido de cacau é também a manteiga, por exemplo. Com isso, um chocolate comercial qualquer pode ter – e na maioria dos casos tem mesmo – 3% de cacau e 22% de manteiga.
Para a Anvisa, “chocolate é o produto obtido a partir da mistura de derivados de cacau (Theobroma cacao L.), massa (ou pasta ou liquor) de cacau, cacau em pó e ou manteiga de cacau, com outros ingredientes, contendo, no mínimo, 25 % (g/100 g) de sólidos totais de cacau. O produto pode apresentar recheio, cobertura, formato e consistência variados”.
Essa regra é válida desde 2005, ano de crise da produção nacional de cacau, quando o governo baixou o percentual no intuito de combater o desabastecimento e os preços altos demais para a indústria. Antes disso, o percentual a ser seguido era de 32%, desde 1978. Atualmente, tramita no Senado, ainda em estágio inicial de debate, um projeto de lei que pretende elevar a concentração para 35%. E ainda é pouco!

Chocolate de verdade precisa ter cacau. Por isso que os percentuais acima de 40% são o mínimo aceitável para considerar um produto fino. O presidente da Câmara Setorial do Cacau e vice-presidente da Federação de Agricultura da Bahia, Guilherme Moura, tem uma boa frase para o que ocorre: “1 em cada 3 chocolates não poderiam ser chamados de chocolate”.
Na contramão do produto industrializado para o consumo de massa, o sul da Bahia emerge de três décadas de crise para a produção de chocolates finos, de origem, com cacau de verdade. Já são cerca de 40 fábricas na região de Ilhéus que manipulam o fruto cultivado nas fazendas locais.

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“Ele fala a nossa língua, literalmente, ele samba com a gente, e ele canta o Carnaval, e ele lava a escadaria do Bonfim, e ele faz tudo o que nós fazemos. O chocolate brasileiro tem identidade, tem personalidade brasileira, como os nossos frutos, como nosso solo, com índice de insolação, os tipos de vitamina que o seu corpo precisa”, defende Lucas Corazza, confeiteiro paulista.
Corazza é um profissional da gastronomia que trocou de vez o chocolate belga de suas receitas pelo sabor marcante e tropical do produto brasileiro. E ele não é o único. O chocolate brasileiro do sul da Bahia é típico, tem sabor e cheiro mais fortes, mais acidez, características genéticas e de cultivo regionais.
“Aqui, o cacau nasce na mata nativa”, explica Corazza.

Produção

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Em Ilhéus e arredores, os pés de cacau nascem dentro da Mata Atlântica – um pedacinho dos 7% que restam do bioma mais ameaçado do Brasil (de acordo com a Fundação SOS Mata Atlântica, do Instituto Socioambiental, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e da Sociedade Nordestina de Ecologia). Esse modelo de cultivo tradicional é chamado de Cabruca.

“O sistema cabruca é um legado cultural dos pioneiros do cacau, que começaram a implantar a cacauicultura na região, eliminando cipós e madeiras finas da mata e implantando o cacau nas clareiras que eles abriam. É uma conservação produtiva”, conta Adonias Castro, chefe do Centro de Pesquisa da Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac).

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Segundo o pesquisador, o sistema tradicional é de alta sustentabilidade “porque preserva tanto a fauna, quanto a flora, mantém a conectividade gênica, contribui para o sequestro de carbono e de forma decisiva para a preservação das bacias hidrográficas”.
Hoje, o sul da Bahia tem cerca de 500 cacaueiros, em 300 mil hectares, 70% deles são pequenos e médios produtores que plantam até 20 hectares. A Cabruca prevalece na Bahia, mas também existe a produção de cacau consorciada com outras culturas, como as seringueiras, as palmeiras, as bananeiras e o cupuaçu. Nestes casos, o manejo é intensivo e há necessidade de irrigação.

Há pouco menos de dez anos, produtores de cacau da região têm dedicado parte de suas plantações para a colheita e tratamento de um fruto selecionado, muito diferente do que é vendido como commodity. Esse cacau especial corresponde, em média, a apenas 5% ou 6% do volume total da colheita.
O maior produtor de cacau do país, Angêlo Calmon Jr., no entanto, colhe 100 mil arrobas por ano, o equivalente a 1,5 mil toneladas, e destina quase 20% para a produção ao chamado chocolate de origem, feito por uma só equipe que acompanha todo o processo, desde a colheita do fruto até a embalagem final.

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“O cacau commodity normal, na bolsa de Nova York, hoje está em torno de US$ 3,2 mil a tonelada. A amêndoa selecionada, com boa fermentação, boa maturação, você consegue vender em torno de US$ 8 mil a US$ 9 mil a tonelada. São três vezes o preço da commodity normal no mercado”, esclarece ngelo Calmon Jr., o maior do país.
“Agora, não é fácil fazer isso. Há uma seleção, você tem que tirar o fruto perfeito. Isso não é uma produção que você consegue fazer em larga escala, porque isso depende do material humano. Precisa de uma pessoa que ame a produção”, define.
E precisa mesmo.

Beneficiamento

A seleção dos frutos que vão virar chocolate fino é criteriosa e a colheita é feita com todo o cuidado. O cacau que cai do pé, por exemplo, já é descartado. Os melhores são levados para um local onde são abertos, um por um, e qualquer anomalia é recusada. Depois, as sementes são revisadas e só as perfeitas chegam à fermentação, que dura no mínimo seis dias. Depois, as amêndoas são lavadas e postas para secar, um processo que pode demorar até 20 dias.
Raimundo Mororó é sócio-gerente de uma das empresas de chocolate de origem mais bem sucedidas do sul da Bahia, a Mendoá. A fábrica fica dentro de uma fazenda de cacau e Mororó diferencia, de longe, o produto selecionado.
“Para commodity é colhido todo o cacau que está no campo, cacau que tenha um pouco de Vassoura [Vassoura de Bruxa, fungo natural da região amazônica] vai todo para o sistema. Normalmente, a fermentação não é muito bem feita, é uma fermentação parcial, até porque a indústria não paga por qualidade, não adianta o produtor ficar ali fermentando seis dias, se ele vai vender um que ele fermentou 3, 4 dias, pelo mesmo preço. Ele tem que ganhar tempo para ter os custos menores. A diferença estaria, muito mais, na qualidade do cacau, dos cuidados em pós-colheita, de manejo, do que propriamente na questão da variedade. No nosso caso, nós estabelecemos variedade, outros nem estabeleceram ainda”, ensina ele.
As amêndoas que passaram pela primeira fase vão para a fábrica e enfrentam novas seleções. Lá, as sementes são degustadas, cortadas e classificadas por lotes de fermentação, que definem índices de acidez, PH, umidade, gordura, açúcar. Depois de tantos critérios, ainda tem cacau que não está bom o suficiente para a produção do chocolate fino.

“Além de ser bastante manejado tecnicamente, ter muita paciência, a gente leva em torno de 26 dias entre colher o fruto e sair com o chocolate no final. Não é uma coisa feita de qualquer forma, é acompanhando tecnicamente, com controle de temperatura, condições ambientais de radiação solar, tudo isso é controlado”, enumera o gerente.
O resultado é um chocolate refinado e, como resumem os próprios produtores, com personalidade. A maioria tem percentual de cacau mínimo de 50%, com um sabor mais marcante do que o brasileiro está acostumado, principalmente porque não tem leite, nem baunilha.

Comercialização

O público consumidor tem recebido bem a novidade. A chocolatier Luana Lessa é sócia-proprietária de outra marca baiana de chocolate de origem, a Chor, e conta que vê a mudança no comportamento do público.

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“A gente está com a loja há três anos e vem percebendo uma mudança de comportamento do consumidor. Antes, ele valorizava realmente o açúcar, o doce. E hoje não, ele sabe que quanto mais cacau, mais benéfico à saúde ele vai ser. Então, hoje ele já chega falando de percentual de cacau: cadê o 70% cacau? Isso era uma coisa que antigamente a gente não via”, relata.
Há quatro anos, o sócio de Luana participou do Salon du Chocolat de Paris e ouviu lá que o Brasil não teria condições de fazer chocolate de qualidade, porque não produzia boas amêndoas. “Hoje, em 2015, ele já ouviu o contrário: Nossa, o Brasil já está produzindo um chocolate de qualidade”, conta e comemora ela.
A especialista Chloé Doutre-Roussel confirma. Ela se dedica ao assunto há mais de 35 anos e elogia o desenvolvimento do produto brasileiro, mas pondera que ainda é preciso avançar.
“Para mudar a situação do Brasil não é só necessário que as marcas produzam um melhor chocolate, mas também tem que educar o mercado. Porque se há muita gente fazendo um chocolate mais caro, tem que educar o mercado para entender que esse chocolate é melhor e tem que pagar mais caro”, diz Chloé.

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O Brasil, que já foi o maior produtor de cacau do mundo, hoje ocupa o quinto lugar – junto do Equador corresponde a 30% da produção mundial, já os demais 70% estão na África e na Ásia. O reconhecimento do mercado internacional pode ajudar o país a recuperar a competitividade. O vice-decano do corpo consular da Bahia, Wilson Andrade, conta que tem sido feito um esforço muito grande, primeiro para trazer o conhecimento, trazer o processamento, a experiência de grandes chefes do mundo que estão vindo para a Bahia para fazer treinamentos e preparar a produção local.
“Mas isso será numa escala muito maior e numa velocidade muito maior também se nós trouxermos médios e grandes investidores do setor, que já têm máquinas, que já tem know-how e que já tem o mercado de distribuição não só no seu país, seja Espanha, Suíça, Itália, Estados Unidos”, aponta Andrade.
No Brasil, para encontrar os chocolates finos de origem é preciso procurá-los nos setores de produtores especiais dos supermercados ou em lojas de marca. Para o consumidor final, no varejo, o custo é pelo menos três vezes superior aos chocolates comuns.

Para comer chocolate

Chocolate é uma especiaria que deve ser degustada com apreço e sensibilidade, assim como vinho, chás, ou cervejas artesanais, por exemplo. Cada fruto, cada amêndoa são únicos e entregam um chocolate próprio. Por isso, um produto de mesmo percentual de cacau é diferente de marca para marca.
Cada chocolatier tem a sua fórmula, que leva quantidades de liquor (líquido do cacau, puro e ácido na sua forma natural), de manteiga, de açúcar e de água diferentes. Além de toques de outros alimentos: pimenta, gengibre, cupuaçu, café, amendoim.