O Canal Rural Entrevista desta terça-feira, 28, analisa os impactos econômicos que possivelmente serão causados pelo colapso da Evergrande, o conglomerado chinês do ramo da construção civil, com uma dívida de US$ 300 bilhões.
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O entrevistado é o professor Felippe Cauê Serigati, da Escola de Economia e do Centro de Agronegócios da Fundação Getulio Vargas (FGV), de São Paulo.
Canal Rural — É impossível não lembrar do Lehman Brothers, em 2008, na crise do subprime, que afetou economias do mundo inteiro. Há alguma similaridade, em termos de impacto na economia, com o possível calote da Evergrande, na China?
Felippe Serigati — Pois é. A quebra do Lehman Brothers em 2008 e toda a crise que inaugurou no mercado financeiro, marcando praticamente uma geração inteira, ainda hoje levanta suspeitas quando há problemas como o da Evergrande: será que vai repetir aquele evento?
Então, não. A princípio, o que sabemos é que não lembra muito o caso Lehman Brothers — um banco que, entre os grandes que estavam quebrando, foi o único que não pôde ser salvo. Aqueles papeis sem valor, os títulos podres, estavam espalhados no mercado. O caso da Evergrande não tem nada a ver com isso.
Canal Rural — Na época do Lehman Brothers, as economias emergentes sofreram menos do que as industrializadas, mais desenvolvidas. O que esperar disso?
Felippe Serigati — Entre 2008 e 2009, o problema estava dentro do mercado financeiro dos EUA. Os ativos estavam podres e não estavam mais conseguindo identificar quais instituições estavam saudáveis. Se o banco não consegue captar recursos, ele não consegue emprestar. Aí esse problema migrou para a Europa por meio da maior seguradora do planeta, a AIG. Nessa época, nós não transacionávamos esse tipo de papel e nossos bancos tinham um balanço bem mais sólido, então o impacto aqui foi menor.
Quando a gente olha para a situação atual da China, inclusive no caso da Evergrande, tem similaridades com os emergentes: ‘Evergrande, olha, provavelmente terá que ser encaminhada à falência — credores, você vão ter que reconhecer esse prejuízo no balanço de vocês’. Mas quem são os principais credores? Bancos chineses, só que estatais. Estão fortemente expostos a outros ativos? Até onde se sabe, não. Como o governo chinês pode minimizar esses danos? Por exemplo, fazendo uma transferência de recursos, garantindo liquidez para as instituições financeiras. O governo chinês tem orçamento para isso? De sobra.
Pelo que sabemos até agora, o problema está localizado apenas na Evergrande. Tende a ser algo no padrão do Lehman Brothers? Provavelmente, não.
Canal Rural — O passivo de US$ 300 bilhões é muito maior do que muitos bancos. Quando eu falo de um ativo da construção civil, ele tem uma relação também com o mercado imobiliário, né?
Felippe Serigati — Com certeza. São US$ 300 bilhões, muito dinheiro, imagine um país como a Argentina, cuja dívida externa é de US$ 323 bilhões. Apenas uma companhia, uma companhia grande, e que, dentro do segmento imobiliário chinês, não é a maior, é a número dois.
De qualquer forma, o que isso representa? Aquela China mais antiga, impulsionada por exportações, industrializados e que olhava fortemente para o mercado interno, essa China já está ficando para trás. Isso faz parte de uma estratégia do próprio governo, em seu Plano Quinquenal. Esse caso que estourou na Evergrande já vem acontecendo há pelo menos dois anos, quando o governo avisou as construtoras de que os rumos do país estavam mudando e que elas precisariam se desalavancar, vendendo ativos, inclusive imobiliários — o que fez o valor de imóveis e patrimônios despencar.
Outras empresas conseguiram percorrer esse caminho bem; repito, até agora o problema está restrito à Evergrande.
Canal Rural — Qual é o risco disso para o investidor (pessoa física e jurídica) e qual deve ser o seu comportamento?
Felippe Serigati — Olhando para o investidor pessoa física, aqui no Brasil, dificilmente ele estaria exposto ao mercado imobiliário da China. Provavelmente os gestores já observam esses ativos nas carteiras há um bom tempo.
Mas como isso poderia chegar ao mercado brasileiro? Principalmente via exportações, e exportações de um segmento bem específico, que é a parte de minérios. Uma exposição maior à Vale, por exemplo, teria maiores impactos na economia brasileira. Quem estava com esse papel na carteira, já pagou esse preço.
Canal Rural — E o impacto no agronegócio, qual deve ser?
Felippe Serigati — Vamos imaginar que a situação da Evergrande permaneça igual. O impacto no agro é mínimo. Os fundamentos não sofrem impacto, oferta e demanda continuam as mesmas. Vale a pena acrescentar o detalhe que, na pandemia, ao primeiro sinal de que haveria impacto na economia, o governo chinês interviu. Provavelmente, o investidor associado ao agro terá ainda menos problemas que a turma de minérios.
Canal Rural — As commodities estão supervalorizadas, hoje. Se a demanda cair, isso pode afetar os preços da soja, por exemplo?
Felippe Serigati — Certamente, faz parte da dinâmica do mercado. Os preços dos grãos estão operando em patamares elevados, porque os estoques continuam baixos e não devem voltar aos níveis de três anos.
O mundo teve a pandemia, diversos bancos centrais tiveram que reduzir as taxas de juros para sustentar os preços da demanda no período mais crítico e essa volta tem acontecido aos poucos.
Os EUA permanecem com a taxa de juros no mínimo. Isso faz com que diversos investidores migrem dos títulos da dívida para outros ativos, como commodities, o que eleva os preços.
A coisa ficou mais complicada na China, com uma fuga de capitais, o que pode reduzir as exportações.
Canal Rural — O fato de o agronegócio ser vocação do Brasil pode blindar o país dos efeitos mais nocivos dessa e outras crises?
Felippe Serigati — Sem dúvida nenhuma. E nós vimos isso mais de uma vez nas últimas décadas, em que não faltaram turbulências. O agronegócio, além de ter fundamento de território, tem características complementares à demanda chinesa. Com ou sem turbulência, a demanda permanece a mesma. Tivemos várias crises ao longo da última década e o universo agro conseguiu tocar sua trajetória normalmente. Quem causou mais problemas para o setor foi São Pedro.
Canal Rural — O produtor rural brasileiro precisa se preocupar nesse momento?
Felippe Serigati — Há diversos riscos associados ao setor. Até o momento, eu não colocaria na prateleira dos maiores problemas. Temos questões domésticas, como os conflitos políticos, que alteram as cotações do dólar. A sugestão é manter o radar ligado e não ignorar os problemas.
Em 2008 e 2009, Lehman Brothers foi o que mais marcou, porque foi a gota d’água, mas a crise não começou ali. Em 2007, outras duas empresas quebraram. Quebrou a Merril Lynch, o Bank of America comprou… Até o momento, se o problema da Evergrande for localizado, não deve haver grandes problemas no mercado internacional.
Canal Rural — A aversão ao risco, natural em uma situação dessas, como a da Evergrande, pode derrubar bolsas pelo mundo e o preço das commodities, em especial do minério e do petróleo?
Felippe Serigati — Com certeza. Várias commodities estão operando em patamares muito elevados. Por trás disso, temos um mundo tentando se recuperar. Além disso, o mundo está imerso num imenso volume de liquidez, visto que os bancos centrais imprimiram e injetaram dinheiro nas economias numa forma nunca antes vista, nem entre 2008 e 2009.
Os EUA começam a olhar pra esse inflação e pensam e aumentar a taxa de juros. Uma notícia como essa assusta o investidor, que passa a dar preferência para outros ativos, como as commodities.
Nós estamos operando em situações excepcionais, que não duram a vida toda.
Canal Rural — A construção civil é um dos grandes indicadores econômicos e consumidores de commodities. Os preços do ferro podem afetar importadores e exportadores do minério?
Felippe Serigati — Quando a gente olha os possíveis desdobramentos da Evergrande, qual é o grande canal de transmissão dessa turbulência para a economia brasileira? É a exportação de minério de ferro. A economia brasileira é grande e diversificada, ainda que a pauta esteja voltada para commodities, são várias: ferro, soja e outros produtos. O impacto da Evergrande, se houver, é via a exportação de minério de ferro no agregado do Brasil.
Canal Rural — Qual é o impacto econômico da pandemia do novo coronavírus e como o agronegócio tem feito frente a essa questão?
Felippe Serigati — A gente tem diversos problemas. Não falo crise econômica porque nos últimos anos essa palavra ganhou uma dimensão maior, mas de fato há muitos problemas a serem resolvidos.
O agronegócio tem mostrado enorme resiliência, com fundamentos muito sólidos, mesmo quando o mercado interno passa a apresentar alguma deficiência. Um exemplo muito recente disso é que, durante a pandemia, o setor encontrou uma ótima válvula de escape no mercado internacional.
Quando a gente olha pra economia brasileira, a principal preocupação é a questão sanitária — o cenário ainda é favorável, com uma previsão de vacinar toda a população até o ano que vem.
O que a gente vai ter que resolver são nossos problemas estruturais, carga tributária, reforma administrativa, custo Brasil, nenhuma novidade.
Canal Rural — É possível enxergar uma estratégia chinesa por detrás dessa crise, talvez para baixar essas cotações?
Felippe Serigati — Pelo que a gente viu, sim. As autoridades chinesas utilizando estratégias para reduzir a pressão sobre preços. Ou seja, no momento em que conversamos, a inflação no Brasil está elevada. Na média, tem operado em patamares mais elevados no mundo inteiro.
Apesar disso, o caso da Evergrande não é bem um canal onde a gente consegue enxergar estratégias do governo chinês. Aquela China que cresceu na força bruta, voltada para a construção civil e produtos básicos, ficou para trás. Mas essa mudança não acontece do dia para a noite.
Ou seja, está dentro de uma estratégia? Sim. Para reduzir preços? Não necessariamente. Faz parte de uma estratégia mais ampla.
Canal Rural — A China vai salvar a Evergrande, sob pena de uma insolvência do seu próprio sistema de financiamento?
Felippe Serigati — Talvez não. Mas que sinalizou claramente que vai atuar para evitar efeitos colaterais na economia, isso me parece claro. O governo chinês tem munição pra caramba para isso, seja do lado fiscal ou monetário.
Canal Rural — Quais orientações podem ser dadas, nesse momento, ao investidor e à economia brasileira? Qual comportamento eles devem ter neste momento?
Felippe Serigati — Provavelmente, um gestor de fundo que esteja operando com ativos do mercado imobiliário chinês já deve ter retirado isso da carteira há algum tempo. Agora, se a gente olha para o efeito de contágio aqui dentro, por exemplo, na Vale, quem tinha esse papel na carteira já sofreu a perda.