Dos 68 mil relatos de violência contra mulheres de todo o país recebidos entre janeiro e julho deste ano pelo Ligue 180, serviço oferecido pela Secretaria de Políticas para as Mulheres, cerca de 4 mil vieram do campo. Na maior parte dos casos, as ligações partiram de agricultoras que sofrem agressões físicas e morais dentro de casa, e que lutam com a vergonha e o medo de denunciar. Os casos acontecem mesmo com a vigência da Lei Maria da Penha, que completa dez anos neste mês e garante o direito à proteção das vítimas.
A produtora aposentada Marta Pereira da Silva, da zona rural de Luziânia (GO), por exemplo, relata um histórico de abusos ocorridos ao longo de mais de 30 anos por seu ex-marido. “Um dia ele me falou que queria me bater como batia em um homem. Nesse dia eu fiquei toda inchada, toda machucada”, conta ela.
Marta diz que as agressões continuaram mesmo depois da separação, quando ele invadia a casa durante a noite. “O que mais me doeu foi ter ouvido ele falar ao meu filho que só não me matava por ser mãe dele. De certa forma, eu devo a minha vida aos meus filhos”.
Do total de mulheres do campo atendidas no semestre pela Central de Atendimento às Mulheres em Situação de Violência – Ligue 180, cerca de 1000 correm risco de morte. E a maioria convive com a violência dentro de casa durante anos.
“Como vencer isso? Denunciando. Elas não têm que ficar dentro das suas casas sendo agredidas pelos seus maridos, sendo xingadas, humilhadas, ultrajadas, tendo uma vida de miséria”, resume Marta Pereira da Silva
De janeiro a julho deste ano, a central do Ligue 180 atendeu mais de 555 mil ligações, 133% a mais que no mesmo período do ano passado. A maior parte ainda é pra buscar informações. Mas do total de atendimentos, quase 68 mil foram relatos de violência, sendo 34 mil de violência física e 21 mil, psicológica. Desses relatos, 38 mil viraram denúncias, com a busca de proteção para a mulher na Justiça.
A secretária de Políticas para Mulheres, Fátima Pelaes, diz que quase 60% das vítimas são mulheres negras ou pardas, e que grande parte das denúncias parte de quem sofre a violência. Apesar disso, o número de homens que relatam as agressões vem aumentando. Segundo ela, quase 20% dos denunciantes são do sexo masculino – filhos, vizinhos e parentes das vítimas.
“Nós queremos chegar a um número maior, porque essa não é uma luta só da mulher, é uma luta da sociedade. A mulher é protagonista, sim, mas nós temos que estar juntos”, diz a secretária.
O movimento de mulheres camponesas estimula agricultoras a quebrarem o silêncio e contarem suas histórias. Mas a estrutura que é oferecida para receber as vítimas ainda é frágil. Segundo Iridiani Seibert, da direção nacional do Movimento de Mulheres Camponesas, muitas vezes, ao fazer a denúncia, elas sofrem uma segunda violência, sendo tratadas com desconfiança ou insensibilidade pelo delegado que as recebe.
“Existem outras formas de violência, que são mais imperceptíveis, que são a violência psicológica, a violência moral, a violência que vem da dependência econômica, que é muito forte no meio rural”, afirma.
Foi pensando nos filhos, que Marta Pereira da Silva adiou a decisão de denunciar o homem que a agredia. Somente em 2014, com a denúncia feita, a Justiça determinou uma medida protetiva, impedindo que o ex-marido se aproximasse.
“Eu me arrependo. Se eu pudesse voltar dez anos, iria viver minha vida com mais dignidade”, afirma a agricultora.