Na última semana, uma operação resgatou 207 trabalhadores em situação análoga à escravidão em Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul.
Eles trabalhavam na colheita da uva para três vinícolas da região. A ação conjunta entre a Polícia Rodoviária Federal, o Ministério do Trabalho e Emprego e a Polícia Federal flagrou baixas condições de higiene e refeições estragadas.
Os trabalhadores, em sua maioria vindos da Bahia, relataram que eram mantidos presos, sem receber salários e sofrendo violência.
Eles foram recrutados pela empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda. para fazerem a colheita para as vinícolas Salton, Aurora e Garibaldi.
Por meio de notas, as três vinícolas disseram desconhecer a situação e que apenas usavam o serviço da terceirizada.
Grande parte dos trabalhadores já voltou para suas cidades de origem e recebeu indenizações.
A Associação dos Produtores do Vale dos Vinhedos (Aprovale) esclarece que o ato foi praticado por um contratante e não pelas vinícolas.
“O sentimento é de tristeza e revolta. 95% dos produtores são pequenas propriedades onde cada família luta para vencer o trabalho. Nosso espírito é de acreditar nas pessoas e essa pessoa sem escrúpulos se aproveitou exatamente disso. Vou deixar uma coisa bem clara: dentro de nenhuma vinícola nossa não houve e nem haverá trabalho escravo, mas o que aconteceu naquele alojamento é inadmissível. Agora temos que tomar as medidas para vigiar e zelar”, diz o vitivinicultor Sandro Valduga, presidente da Aprovale.
“Importante orientar a todos que contratam em situação excepcional como é a colheita, seja por terceirização ou de outra forma, que eles têm responsabilidade pela forma como a atividade vai se desenvolver. Nós vamos atuar para dar a orientação, fiscalizar e garantir as condições dignas de trabalho como é o valor que norteia a atuação dos gaúchos em todas as regiões, inclusive a Serra Gaúcha”, afirma o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite.
O Rio Grande do Sul é o maior produtor de uva e, consequentemente, de bebidas derivadas como vinhos, espumantes e sucos.
Segundo a Secretaria da Agricultura, o setor movimenta mais de R$ 3 bilhões por ano.
Agora, a preocupação de entidades ligadas à uva e vinho é que produtores e vinícolas que não têm nada a ver com a história também sofram os efeitos, como a diminuição do consumo dos produtos gaúchos.
O estado tem 20 mil famílias produtoras de uva, 46 mil hectares e mais de 750 vinícolas espalhadas por todas as regiões, conforme o IBGE. A desinformação é o maior medo de quem vive da atividade após o ocorrido.
“Os produtores são pessoas sérias, que não concordam com esse tipo de coisa, mas estão vendo o produto que eles estão fazendo sofrer campanhas de que são manchados de sangue. As cooperativas estão sofrendo as consequências disso, e onde vai estourar isso? Vai estourar no produtor que já tem todas as dificuldades, três anos de estiagem e que agora está vendo mais uma coisa para prejudicá-lo. A guerra comercial não pode ser usada para prejudicar uma categoria ou um produto como é o caso”, defende o presidente da Fetag, Joel Carlos.
As primeiras ações já repercutem. A Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos, Apex Brasil, suspendeu a participação das três vinícolas em feiras internacionais, missões comerciais e eventos promocionais.
Uma grande rede de supermercados já retirou das prateleiras todos os produtos de uma das marcas após pressão dos consumidores.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) também recomendou igrejas que não comprem vinhos de marcas associadas a trabalho escravo para celebrações.
“Não podemos confundir estes gestos e atos criminosos e que merecem o rigor da penalização com toda uma cadeia produtiva, toda uma região exponencial que historicamente o que sabe fazer é trabalhar e produzir boas coisas e viver em sociedade de forma acolhedora aos seus irmãos de todos os rincões e quadrantes. Não faz parte do nosso jeito de ser, pensar e viver, que certamente é produzir bem produzido, respeitar, conviver e acolher”, afirma o secretário de Agricultura do Rio Grande do Sul, Giovani Feltes.
A safra de uva está em plena colheita e deve ser de 700 mil toneladas.
Em Bento Gonçalves, será criada uma central para informações a trabalhadores e vinícolas. As autoridades tentam esclarecer os fatos para que a cadeia produtiva e o turismo não sejam afetados.
“Todo mundo lamenta o que aconteceu, e a gente sente por essas pessoas, mas o setor todo não pode ser penalizado. A ação de uma empresa terceirizada não pode impactar em mais de 20 mil famílias que têm uma história muito grande por trás. São mais de 100 anos dessas famílias, algumas na terceira ou quarta geração trabalhando com uva, e elas serão impactadas por essa situação”, diz o prefeito de Bento Gonçalves, Diogo Siqueira.