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'Boi safrinha' maximiza uso da terra e eleva receita dos produtores no Cerrado

Segundo a Embrapa, a receita bruta obtida com o boi safrinha foi estimada em R$ 12,3 bilhões em 2019/20, quase o dobro do ano-safra anterior

Produtores rurais do Cerrado têm encontrado na adoção de um sistema de Integração Lavoura-Pecuária (ILP) uma alternativa rentável para evitar os riscos climáticos da segunda safra de verão em sistema de sequeiro, aproveitar áreas agrícolas que ficam em pousio durante o inverno, período seco do ano, produzir carne a custo mais baixo e incrementar a produtividade das lavouras de grãos. De acordo com a Embrapa, o sistema que é conhecido como “Boi safrinha”, “safrinha de boi” ou “pasto safrinha”, tem sido uma tecnologia cada vez mais adotada na região.

De acordo com a avaliação de impactos da tecnologia realizada pela Embrapa Cerrados (DF), o Boi safrinha ocupou, no ano-safra 2019/20, 3 milhões de hectares no Cerrado, ante 2,3 milhões em 2018/19. A área é estimada com base na estimativa de formação de pastagens e cobertura de solo com as espécies forrageiras mais utilizadas para o período seco do ano em sistemas de ILP especializados.

A receita bruta com a tecnologia foi estimada em R$ 12,3 bilhões, quase o dobro do ano-safra anterior (R$ 6,2 bilhões) e a margem bruta em R$ 2,99 bilhões, praticamente o triplo do período antecedente (R$ 1 bilhão), com rentabilidade mensal de 9,7% do capital investido por ha, quatro pontos percentuais acima do obtido em 2018/19. A rentabilidade total em 2019/20 foi de 31,7%/ha, contra 18,8%/ha do período anterior. As simulações econômicas de 2020 consideram os valores de R$ 207,25 para boi magro e R$ 243,59 para boi gordo, com base em valores médios do Instituto Mato-Grossense de Economia Agropecuária (Imea) nos meses de junho e outubro, respectivamente.

O efeito ambiental de “poupa-terra” (quando novas áreas deixam de ser utilizadas devido ao uso de tecnologias de intensificação do uso da terra) foi de 9,4 milhões de ha de pastagens perenes desocupadas durante a estação seca no Cerrado e pelo pastejo evitado decorrente da antecipação da idade de abate dos animais, contra 7,1 milhões de ha em 2018/19. Cada real investido na pesquisa sobre a tecnologia, entre 2009 e 2015, retornou R$ 534,82 para a sociedade.

O sistema recebeu esse nome em alusão à segunda safra de milho, também chamada “milho safrinha”. Nele, uma gramínea forrageira dos gêneros Brachiaria ou Panicum é semeada simultaneamente com o milho ou sobre semeada a lanço em soja, a partir do final do enchimento dos grãos até o amarelamento das plantas. Após a colheita da lavoura de grãos, a massa de capim formada para cobrir o solo para o plantio da cultura anual no verão seguinte em Sistema Plantio Direto* (SPD) também pode ser usada como pastagem de curta duração na cria, recria ou terminação de bovinos, promovendo bem-estar animal, diminuindo custos com confinamento, intensificando o uso da área e aumentando a lucratividade das fazendas.

Benefícios do Boi Safrinha 

Lourival Vilela, um dos pesquisadores responsáveis pela sistematização do Boi safrinha, destaca que tanto os produtores de grãos e fibras como os pecuaristas se beneficiam da tecnologia, assim como os frigoríficos, que contam com maior oferta de carne na estação seca, quando há menor disponibilidade de forragem.

Os principais impactos agronômicos do sistema Boi safrinha observados pelos pesquisadores são ganhos de produtividade de soja de 10 a 15% quando em sucessão a pastagens de maior produtividade e adubadas; ganho de peso em equivalente-carcaça entre 6@/ha e 12@/ha na pastagem de curta duração na estação seca; e ciclagem de nitrogênio, fósforo e potássio estimada, em equivalente-fertilizante, em cerca de 60 kg/ha/ano de ureia, 95 kg/ha/ano de superfosfato simples e 85 kg/ha/ano de cloreto de potássio, respectivamente.

O sinergismo da rotação lavoura-pasto do sistema promove melhoria das propriedades físicas, químicas e biológicas do solo, resultando no aumento do teor de matéria orgânica do solo; diminui a incidência de plantas daninhas e auxilia no controle de pragas e doenças das culturas, como Fusarium spp. e mofo branco em soja, reduzindo o uso de agroquímicos. Além disso, a palhada do capim, se bem manejada, aumenta a taxa de infiltração de água no solo, elevando a recarga do lençol freático.

Desenvolvimento

Apesar de ter sido descrito em uma publicação somente em 2017, o Boi safrinha já existia como prática desde o início da adoção de sistemas de ILP para recuperação de pastagens em fazendas na década de 1990, como lembra Lourival Vilela.

“Um dos aspectos que mais chamavam a atenção é que as pastagens permaneciam verdes por um período longo do ano. Quando o produtor de grãos começou a introduzir a braquiária nas áreas de agricultura, surgiu esta oportunidade: trabalhar com o boi, que é uma atividade de menor risco que o milho safrinha em muitas regiões”, diz o pesquisador.

O médico veterinário William Marchió, que atua como consultor de agronegócios em 11 estados brasileiros e no Paraguai, aponta que o Boi safrinha é uma estratégia que se tornou corriqueira em grande parte das fazendas com atividades agrícolas e pecuárias, principalmente em estados com perfil agrícola, como Mato Grosso, Goiás e Mato Grosso do Sul, mais receptivos a esses sistemas.

“O fato de haver uma gramínea no sistema diminui a ocorrência de pragas e doenças e aumenta o teor de matéria orgânica do solo. A fertilidade do solo fica bem conduzida e quem se dispõe a ter gado produz uma arroba muito barata (por R$ 120 a R$ 140, contra R$ 200 na pastagem convencional). Além disso, os animais em pastejo conferem aumento da produtividade agrícola”, explica.

Marchió observa que os principais adotantes do Boi Safrinha são pecuaristas que se tornaram também agricultores há cerca de 15 anos atrás, quando se iniciou o aumento da adoção de sistemas de integração no País. Em seguida, aparecem os agricultores que vislumbraram a agregação de valor com a atividade pecuária e adquiriram animais – por sinal, o principal investimento do sistema.

Lourival Vilela destaca que a tecnologia vai além da alimentação dos bovinos na entressafra. “Há fazendas que estão fazendo a estação de monta invertida, saindo do período tradicional (novembro) para o mês de maio (período da pastagem do Boi safrinha)”, comenta, salientando que os animais, nesse sistema, não perdem peso. “O grande objetivo do criador é obter mais bezerros por área. Na monta invertida, ele consegue aumentar a fertilidade das vacas devido ao valor nutricional superior da pastagem. Além disso, o nascimento dos bezerros ocorre normalmente na seca. Com a inversão da monta, a mortalidade diminui”, completa Marchió.

Vilela acrescenta que a maior disponibilidade de forragem proporcionada pelo sistema, aliada ao manejo animal adequado, pode proporcionar a redução das idades de abate dos animais machos e de primeiro parto das novilhas, encurtando o ciclo pecuário e proporcionando o aumento da rentabilidade da atividade ano após ano.

“Estamos num momento de demanda internacional por alimentos muito fortes. A tendência é de que as commodities continuem sendo valorizadas. Como o valor da terra aumentou muito nos últimos anos, o produtor que não conseguir fazer a expansão horizontal da produção fará a expansão vertical, aumentando a produtividade na mesma área”, aponta Marchió.

Existem diferentes alternativas de Boi safrinha, e a escolha depende das condições operacionais da fazenda, como infraestrutura, cercas, aguadas e máquinas, bem como das condições climáticas de cada região favoráveis aos cultivos de soja, milho e sorgo, e do conhecimento e experiência necessários para implantação das práticas do sistema.

Caso de sucesso

No Oeste da Bahia, as condições climáticas são restritivas ao cultivo da segunda safra de verão, como o milho após a colheita da soja. A Fazenda Triunfo, em Formosa do Rio Preto (BA), propriedade da família de Eduardo Manjabosco, adota o Boi safrinha há mais de 10 anos, tendo contribuído para a validação da tecnologia. O sistema é atualmente usado em toda a área com milho da fazenda, que na safra 2020/21 representa 4900 ha.

A fazenda utilizava tradicionalmente a semeadura do capim Brachiaria ruziziensis após a emergência do milho, visando à formação de palhada para o SPD. “Era muita palha de ótima qualidade e achamos que seria um desperdício não colocar um boi para comer parte daquela forragem no período da seca. Foi aí que decidimos adotar o Boi safrinha”, lembra Manjabosco.

Para melhorar o rendimento operacional do plantio do consórcio, foram introduzidos na safra 2009/10 os consórcios milho com B. ruziziensis e milho com B. brizantha cultivar Piatã em 200 ha da propriedade. A semeadura das braquiárias foi realizada imediatamente antes do plantio do milho, sendo que o capim Piatã foi utilizado para diversificação do sistema e aumento do potencial de produção de forragem.

Naquele primeiro ano, a produtividade do milho no consórcio com B. ruziziensis foi de 156,6 sc/ha, valor próximo ao do rendimento do milho solteiro (160 kg/ha). Já a produtividade do consórcio com o Piatã foi de 140 sc/ha (com capim Piatã), sendo que houve competição do capim com o milho, afetando a produtividade. Segundo Manjabosco, as produtividades médias do milho no sistema vêm se mantendo próximas a 200 sc/ha, sendo que na safra 2019/20 foram colhidas 187 sc/ha.

Ganhos na pecuária e na soja

A formação de massa seca de forragem nos consórcios no primeiro ano de Boi safrinha na fazenda foi de 2.677 kg/ha (B. ruziziensis) e 5.514 kg/ha (Piatã). Na entressafra, o ganho de peso médio de animais Nelore chegou a 0,98 kg/animal/dia no consórcio com o capim Piatã, e a 0,8 kg/animal/dia no consórcio com B. ruziziensis, com rendimentos médios de carcaça de 6,9@/ha e 3,4@/ha, respectivamente.

O pastejo na fazenda é manejado em piquetes de 50 ha, de modo a preservar cerca de 50% da massa de forragem acumulada no consórcio com milho para uso no SPD. Assim, quando o consumo de forragem se aproxima dessa meta, geralmente entre 15 e 20 dias, os animais são transferidos para uma nova área, num sistema de pastejo itinerante.

Entre 2010 e 2015, a melhoria do potencial genético do rebanho da propriedade, associada aos ajustes no manejo animal e na pastagem no sistema, proporcionou a redução na idade de abate de 36 para 24 meses, além do aumento de 29% no peso médio da carcaça, de 202 kg para 261 kg. O crescimento médio anual de bovinos engordados foi de 41%.

Cerca de 90% dos animais utilizados na Fazenda Triunfo para recria e terminação vêm de outra propriedade da família, em Riachão das Neves e Santa Rita de Cássia (BA). Em 2020, eles foram vendidos com idade entre 22 e 23 meses e com peso médio de 315 kg (ou 21 @). Com o aumento da área ocupada pelo Boi safrinha na fazenda ao longo dos anos, o número de animais no sistema passou de 358 em 2010 para cerca de 4800 no ano passado. “Para nós, houve um grande ganho com a implantação do sistema Boi safrinha. Os negócios andam bem e, com o aumento do preço da arroba, melhor ainda”, afirma Manjabosco, que prevê utilizar em torno de 5 mil cabeças no sistema em 2021.

Ele observa que, como no Boi safrinha a engorda do gado ocorre no período de preços mais baixos da arroba (início da seca), o sistema proporciona animais gordos no período em que os preços começam a subir (final do período seco) e ainda há pouca oferta no mercado. “É um ganha-ganha de vários lados”, comenta o produtor.

Na safra 2010/11, a produtividade de soja em áreas de SPD no resíduo pós-pastejo havia sido de 67,5 sc/ha, 24% a mais que as 54,6 sc/ha obtidas nas áreas sem os capins. Nas últimas safras, a produtividade média em soja tem sido de 72 sc/ha, tendo alcançado 82 sc/ha na safra 2017/18. “Tanto em pesquisa como em trabalhos realizados em fazendas, tem-se observado que o pastejo do capim na entressafra tem proporcionado rendimentos de grãos maiores que em áreas não pastejadas. Em soja e milho, esses aumentos na produtividade são da ordem de 5 a 10 sc/ha”, diz Lourival Vilela.

“Sou fã do sistema e não quero voltar atrás. Ele me ajuda a colher mais soja e permite utilizar uma mão de obra que ficaria ociosa na entressafra, quando em vez de produzir nada, produzo carne”, afirma Manjabosco, acrescentando que o Boi safrinha na Fazenda Triunfo também viabiliza a propriedade de pecuária, onde o gado é mantido em pastagem extensiva com tecnologias de adubação e correção do solo.