O que deveria ser um projeto de reforma agrária virou um balcão de negócios. Durante quatro meses, a equipe de reportagens investigativas do Canal Rural percorreu assentamentos em Goiás e no Pará para mostrar como os lotes de destinados à reforma agrária servem para especulação imobiliária. Terras que deveriam ser destinadas à produção familiar são vendidas como sítios de lazer. Um mercado que floresce à sombra das autoridades, sustentado pela corrupção, com a conivência de servidores públicos.
O Assentamento Maria Cícera Neves, no município de Vila Propício, interior de Goiás é uma mostra disso. Lá vivem 117 famílias assentadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Com uma câmera escondida, iniciamos a negociação para a compra de um lote de 22,8 hectares. O valor pedido pelo assentado foi R$ 60 mil.
A negociação é intermediada por um agente conhecido no assentamento como Cigano. Quieto e de poucas palavras, ele age como um corretor clandestino e acompanha de perto toda a negociação. Outro negociador é conhecido como Capitão, um dos primeiros assentados a receber um lote do Incra no Maria Cícera Neves. Ao mostrar um lote disponível para nosso repórter, Capitão afirma que está negociando apenas as benfeitorias, não a terra. Esta é uma das formas usadas pelos assentados para burlar a lei.
– Aqui a gente não fala que vende a terra, a gente vende a benfeitoria porque até então a terra é do Incra – explica Capitão.
Um servidor com 10 anos de carreira no Incra confirma que o esquema ilegal, mas amplamente conhecido e praticado dentro do Incra. Nem o servidor nem sua unidade podem ser identificadas, uma vez que ele já recebeu ameaçar de morte por combater esta ilegalidade.
– A forma de mascarar é a famosa compra e venda de benfeitoria. Mas não há respaldo dentro do órgão para isso. Os servidores estão fazendo vista grossa, recebendo propina, regularizando a situação. Só quem poderia indenizar algum assentado desistente por suas benfeitorias seria o próprio Incra.
Separado por 1,3 mil quilômetros, o assentamento Maria Preta, em Ourilândia, do norte no Pará é outro caso de descontrole e falta de fiscalização do Incra. Em cada esquina se vê uma placa anunciando a venda de lotes. A antiga fazenda Santa Clara, ocupada pelo MST e desapropriada pelo Incra em 2005. No projeto original, ele deveria ter 73 famílias. Dez anos depois já são quase 500.
O que deveria ser um projeto de desenvolvimento agrícola virou um aglomerado urbano que cresce sem controle. É possível até mesmo encontrar na internet anúncios de venda de casas dentro do assentamento. Lá, vimos uma casa com dois quartos, com uma suíte, um banheiro social, cozinha, anunciada por R$ 65 mil. A vendedora não esconde que os terrenos não são regularizados.
– Como lá foi invadido tempos atrás, não tem documento, só contrato de compra e venda.
Com as ofertas do assentamento nas mãos, fomos até o escritório do Incra buscar ajuda para regularizar o lote. O funcionário confirma que as terras são do órgão e que não há nenhum tipo de controle.
– Se o Incra quiser fazer a retomada de terras ele tem direito, porque a terra é dele. Só que isto não acontece porque a gente sabe que a realidade é outra. Então o Incra teria que fazer um mutirão e sair pra tudo que é canto. Cada caso é um caso, eu tenho que ver a posição do chefe – justifica o funcionário.
Levamos as imagens para a Superintendência do Incra em Goiás. O superintendente regional substituto, Alberto Batista da Silva Filho afirma que não é possível monitorar todos os assentamentos pelos quais a regional é responsável.
– Com a quantidade de assentamentos que nós temos aqui na superintendência de Goiás, não dá para ter o monitoramento destas situações que acontecem dentro dos assentamentos. Seria necessária uma atividade em caráter permanente, com um custo altíssimo, para se fazer este tipo de fiscalização – diz Silva Filho.
Velha história
Somente no assentamento Maria Cícera Neves, de Goiás, existem 25 notificações do Incra a pessoas que compraram a terra de reforma ilegal. Elas estão passando por um processo de avaliação do órgão e, mesmo jamais tendo participado de qualquer cadastro, poderão ficar em definitivo com os lotes.
O procurador da República Ailton Benedito de Souza diz que a situação encontrada em Goiás não é nenhuma surpresa. Não muito tempo atrás, afirma ele, 20% de parcelas destinadas à reforma agrária já estavam sendo ocupadas por outras pessoas.
– Veja como é curioso, muitas das pessoas que ocupavam as parcelas, estas sim tinham vocação para lidar com a terra. Mas não integravam os movimentos sociais, portanto não integravam o processo de captura, de manipulação das pessoas para pressionar o Incra para adquirir novas áreas – diz o procurador.
Não é apenas o procurador da República que critica a influência do MST na destinação dos lotes dos assentamentos. O servidor do Incra que não podemos identificar também alerta para a influência dos movimentos sociais dentro do órgão.
– O movimento social reforça esta engrenagem na medida em que ele apoia cargos políticos para ocupar a direção dos órgãos nas suas regionais até a nível nacional. Como um superintendente ou um chefe de divisão que recebe apoio de alguns destes movimentos vai negar depois um pedido para o movimento?
Nossa fonte dentro do Incra denuncia que o sistema de regularização de terras no órgão é falho, uma porta aberta para a fraude.
– Há tantas brechas que permitem que quem compra vá até o Incra para regularizar o lote. Com isso, estas pessoas estão tendo sucesso e conseguindo realizar lucro em detrimento das famílias que precisam da terra para sua subsistência.
E faz um alerta: a falta de cumprimento das políticas públicas que garantiriam o sucesso da reforma agrária é outra porta aberta para irregularidades.
– As famílias assentadas muitas vezes não conseguem ter sucesso porque falta estrada, falta assistência técnica. Aí vem alguém oferecendo valores altos, elas acabam cedendo.